por Alexandre Mate
(professor do Instituto de Artes da Unesp, pesquisador e militante do teatro de rua).
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
A procura da poesia,
Carlos Drummond de Andrade.
Referindo-se ao prédio articulado à linguagem estética, teatro significa lugar de onde se vê, miradouro. Primordialmente, quando o teatro foi batizado com este nome (Antiguidade clássica grega), o objetivo do Estado, ao criar o espaço e ao definir o que deveria ser escrito (os textos teatrais participavam de festivais), centrava-se, sobretudo, na composição de assunto, cuja história oficial precisava ser preservada. Assim, pode-se afirmar, a despeito da qualidade das obras do período que chegaram até nós, que o teatro se caracterizaria, também, em um miradouro de preservação da história oficial.
Expulsos da ágora, e proibidos de apresentar suas obras nos espaços oficiais, tanto por sua irreverência quanto pelos seus “textos” (ou por aquilo que diziam) não se alinhar à história oficial, os artistas populares encontraram na deambulação e na errância o único modo de conseguirem sobreviver e de se dedicar à sua arte. Os gregos não documentaram a produção popular, entretanto, e na medida em que houve muito trânsito entre gregos e romanos, a produção dos últimos serve de baliza e referencia ao que se produziu na Grécia. Os chamados flíacos ou mimos faziam comédia irreverente, rindo de modo iconoclasta (destruidor dos mitos e da história oficial) e, principalmente, dos mandantes do poder da vez.
De origem latina, espetáculo significa o que chama atenção, atrai e prende o olhar; assim, essa ação ocorre apenas quando o espectador assiste a obra, pressupondo, portanto, relação, troca. O espetáculo é um fenômeno estético-social cuja tríade essencial compreende: ator, público e texto.
Durante o espetáculo, ator e público promovem uma relação fundamentada em jogo de decifração de símbolos, tanto enigmáticos (mais difíceis de serem traduzidos) e de alegorias (símbolos facilmente traduzíveis). A troca entre ambos (atores e público) ocorre quando o texto que intermedia essa relação, na condição de um “tecido simbólico”, transforma-se em gesto. Na condição de uma fratura do cotidiano, o espetáculo, que acontece no tempo e no espaço, compreende um grande arcabouço de gestualização estético-social. O gestual passa pelo corpo do ator que, na condição de ser social, irradia complexa e múltipla gama simbológica. O poeta francês Charles Baudelaire afirma, em um de seus textos, que a arte é uma “floresta de símbolos”, e que toda floresta é inexpugnável (na condição de organismo vivo e premida por mistérios ela não se dá a conhecer...).
Normalmente, em nosso cotidiano, não prestamos tanta atenção aos gestos que fazemos, mas todo ser social incorpora ao seu corpo atitudes gestualizáveis – herdadas do contexto histórico-social – com a incumbência de provocar, de emocionar, de estupidificar, de enviar sinais, de promover uma troca... Nas artes da representação, o corpo potencializa sua capacidade expressiva, redimensionando-se a partir de gestualização totalmente elaborada. Dentre gama infinda, e em acordo com o gênero e a recepção, tudo, na condição de índice, passa a ser passível de ser interpretado... Aliás, a palavra intérprete e interpretação têm a junção (do latim) de inter (entre) + pretium (preço) = portanto, espécie de corretor, aquele que trata e atribui um preço, um valor a... claro, o conceito ganha, ao longo da história outras conotações...
O gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as determinações histórico-sociais, em seu sentido estrito e restrito). A literatura teatral, cuja essência pressupõe a organização de linguagem mediada por palavras escritas, em teatro, efetiva-se por meio de símbolos sonoros e duplamente gestuais (intenção por meio da qual a palavra se projeta) e atitude do corpo; então, o texto falado corresponde a uma linguagem corpóreo-sonora, cuja existência é traduzida gestualmente.
“Vestido” ou não com a personagem, de modo a reproduzi-la critica ou a decalcá-la verossimilhantemente (colocar-se em situação, como se fosse a personagem, apresentar uma cópia muito e tão próxima do original), o teatro é um jogo, fundamentado no ludibrio por meio do qual se pode enganar ou explicitar as regras e evidências ao espectador: tudo depende da parceria que se queira estabelecer. De qualquer modo, Bertolt Brecht afirma ser preciso mostrar a personagem, na condição de um experimento de natureza social! Ainda para o pensador e dramaturgo alemão, a exteriorização do gesto é, na maior parte das vezes, contraditória e complexa e dificilmente transmitida por uma única palavra. Insiste em que é salutaríssimo desconfiar de tudo o que pensamos e fazemos...
Em português, a manifestação corporal apreensível e materializada pela fala; pelo movimento – em si e no espaço (sentido estrito e restrito); por índices visuais (tatuagens...) é apresentada por uma única palavra. Em alemão, a múltipla e complexa atitude do ser social tornar-se um tecido simbólico é apresentada pelas palavras-conceito: gestisch corresponde a linguagem gestual; gesten corresponde a conjunto de manifestações corporais (um dançarino, uma multidão); gestikulieren corresponde aos gestos que acompanham a fala, quase sem intenção fática, espécie de movimento reflexo; gestik corresponde aos gestos que acompanham a fala ou não, com função fática, expressiva (alegorias).
Por conta de Bertolt Brecht fazer thäeter (linguagem artística contrária ao, por ele chamado, teatro culinário), o gesto social caracteriza-se no atributo social e no conceito central de sua estética. Desse modo, ao refuncionalizar a palavra latina gestus, e por estar convencido de que por meio do gesto o ator, por inteiro se faria social, Brecht cria um teatro épicodialético, também, na dimensão gestual. Gerd Bornheim (Brecht: a estética do teatro. RJ: Graal, 1992, p.281) afirma que gestus pressupõe: “[...] a expressão mímica e gestual das relações sociais, nas quais os homens de uma determinada época se relacionam.” Fredric Jamerson afirma, com relação ao conceito ser importante destacar que no trabalho do ator o gestus corresponde ao resultado de um infindável exercício e experimentação de múltiplas hesitações até uma escolha do modo de mostrá-lo. Assim, em O método Brecht (Petrópolis: Vozes, 1999, p.110): “Não é exatamente indecibilidade esta hesitação interpretativa: ela não resvala para o informe; por outro lado, ela incita o espectador a reelaborar seus pensamentos e testá-los contra o evento inicial ou o acontecimento que lhes serviu de pretexto.” Ainda com Jameson, depois de substancial reflexão acerca da etimologia e do conceito de gestus, o conceito assim aparece, à p.139:
[...] gestus é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais, mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário de mão poderia, em certas circunstâncias [...] contar como um fatídico ato histórico, com conseqüências sérias e irreversíveis. [...] é uma superposição e um estranhamento que não apenas nos faz entender o elemento narrativo específico a uma luz nova e transformadora, mas também muda nossas ideias sobre o que é um simples gesto físico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histórico.
Para finalizar, na dimensão épicodialética, o gestus, ao dividir a apreensão do espectador, provoca um conjunto de reflexões. Vê-se algo que, ao expressar variadas e contraditórias conotações, induz ao cotejamento, à contraposição de leituras. O espectador afasta-se do que vê para aproximar-se da vida que vive e, a partir daí, voltar à obra. Em movimento dialético, pode-se ver além do aparentemente apreensível.
Extraido de
A Gargalhada.
Uma Publicação do Buraco d`Oráculo
com distribuição Gratuita – Nº 21 – Abr/Mai.2011.